quarentena

Achei que as coisas seriam diferentes

Eu achei que as coisas seriam diferentes na quarentena. Achei que passando mais tempo em casa, eu finalmente conseguiria fazer várias coisas que eu estava sempre deixando para depois, seja por falta de tempo, ou pelo cansaço. Mas quanto mais tempo passamos vivendo sob a sombra do coronavírus, mais eu percebo que a projeção de produtividade era pura ilusão.

Eu achei que estaria animadíssima planejando as minhas próximas viagens. Achei que estaria usando o meu tempo me afundando em blogs e livros, fazendo contas e roteiros, discutindo possibilidades de visitas à amigos. Mas a realidade é que se eu sequer tento começar a ver essas coisas, me sinto deprimida pela imprevisibilidade do futuro. Não se sabe quando viagens voltarão a acontecer e tenho quase certeza de que a partir de agora irá haver um controle muito maior em relação à circulação de pessoas pelo mundo, então qualquer plano que eu fizer pode acabar sendo inútil.

Eu achei que estaria fazendo exercícios regularmente. Para ser honesta, até tive algum sucesso em manter uma rotina no início da quarentena, mas com a volta ao trabalho no escritório, isso foi por água abaixo, e como uma das minhas maiores motivações em me exercitar está ligada à viagens, é ainda mais difícil ter vontade de levantar do sofá para botar o corpo em movimento.

Eu achei que estaria voltando a estudar chinês a todo vapor. Parei ano passado para me dedicar a um outro curso com a promessa para mim mesma que voltaria logo após o feriadão do ano novo lunar. Não só não retomei as aulas (que poderiam estar acontecendo online), como dois meses depois da minha previsão de volta ainda não abri o livro nem mesmo uma vez, e a cada dia sinto o pouco que eu aprendi lentamente escapando da minha cabeça.

Eu achei que estaria me aprimorando profissionalmente. Estava com vários planos para a promoção e a mudança de unidade na escola, com uma lista gigante de vídeos de palestras para assistir, tópicos para estudar, e livros para me aprofundar em assuntos pedagógicos, que no momento estão abandonados na estante ou no meu HD esperando o momento em que eu vou ter disposição de pegá-los novamente.

E falando em livros, eu achei que estaria lendo como se não houvesse amanhã. Achei que já teria ultrapassado facilmente minha meta de leitura do ano e que teria finalmente concluído vários títulos que a muito tempo estão esperando para serem lidos no meu Kindle. Na realidade, desde que tudo começou para mim a mais de 80 dias atrás, só consegui terminar dois livros curtos, e agora tenho muita dificuldade em focar e engatar no terceiro.

Queria terminar esse texto num tom otimista, mas acho que não será possível. Enquanto as coisas parecem começar a melhorar na China, minha motivação e capacidade de concentração parecem piorar com a situação do resto do mundo. Só posso então torcer para que as coisas melhorem também em outros lugares, assim quem sabe minha ansiedade não se aquiete e eu consiga fazer outra coisa com o meu tempo livre além de surtar com o que eu leio nas redes sociais.

A vida aqui dentro

Hoje fez um dia lindo. Mesmo com a temperatura muito próxima de zero graus, a poluição baixa e o céu azul praticamente me forçaram a botar o nariz para fora de casa. Mas veja bem, um nariz devidamente protegido por uma máscara capaz de filtrar 95% das partículas do ar porque eu não sou boba nem nada. Sair de casa para ir ao supermercado e a padaria normalmente não seriam interessantes o suficiente para que eu sentasse e escrevesse sobre isso, mas em tempos de surto de infecções por coronavírus na China, qualquer oportunidade de ser por a cara no sol deve ser aproveitada (e apropriadamente registrada).

Já fazia quase uma semana que eu não saia de casa e a minha lista de atividades diárias na quarentena anda ficando um pouco repetitiva. Eu leio, vejo filmes, maratono séries, cozinho (sim, até isso), ouço podcasts, limpo a casa (que aliás nunca esteve tão limpa), dou aulas online, organizo os armários, faço listas, estudo, tiro sonecas, faço skincare, e repito tudo de novo, talvez numa ordem diferente só para dar uma diferenciada.

A vida em Beijing segue em frente, ainda que com ruas semi-desertas em plana hora do hush e quase todo mundo trabalhando de casa. As únicas coisas em falta nos mercados e lojas são máscaras de proteção e álcool gel, e em qualquer lugar que você for entrar vão checar a sua temperatura para se certificar que você não está doente. Alguns prédios estão sendo bastante rigorosos e não só barram as pessoas de fora como também só permitem que uma pessoa de cada apartamento saia de cada vez e apenas uma vez por dia. Mas onde eu moro as coisas não são tão ruins, tanto que uma amiga passou aqui anteontem para deixar umas máscaras e ninguém está controlando as minhas saídas (ainda que eu esteja seguindo as orientações do governo e saindo o mínimo possível).

Essa temporada confinada é a prova definitiva de que eu não aguentaria muito tempo no BBB sem surtar. E como há males que vem para bem, ela me fez ter tempo e disposição suficientes para resgatar meu querido blog das profundezas da inatividade onde ele se encontrava pelos últimos dois anos. Torço para que o coronavírus deixe a gente em paz logo e eu possa ir ao mercado sem máscara e sem peso na consciência em breve, mas torço também que eu consiga continuar arranjando um tempinho pra escrever mesmo que esteja um dia lindo lá fora.